Memorial aos Judeus Assassinados da Europa: como permanece a memória?
Memorial aos Judeus
Assassinados da Europa: como permanece a memória?
Autora: Igor Abrantes - igorabrantes16@hotmail.com
Resumo: : O presente ensaio traz uma análise sobre o Memorial do Holocausto. Partindo de uma apresentação do projeto e chegando à uma crítica de como o projeto se insere na memória presente de um episódio de declínio moral da história recente.
Memorial aos Judeus
Assassinados da Europa: como permanece a memória?
O “Memorial aos Judeus Assassinados da Europa (Peter Eisenman, 2005), mais conhecido como Memorial do Holocausto, situa-se em Berlim, na Alemanha, e é fruto de concurso público de arquitetura. O concurso nasce de uma discussão que durou 17 anos sobre a necessidade de se ter um monumento que lembrasse as vítimas do nazismo.
O memorial. Disponível em: https://eisenmanarchitects.com/Berlin-Memorial-to-the-Murdered-Jews-of-Europe-2005
Durante
o Terceiro Reich houve perseguições ostensivas e assassinatos em massa em
desfavor dos grupos contrários aos pensamentos de Hitler: grupos políticos,
elite intelectual e artística, segmentos religiosos, segmentos sociais etc. Porém,
a mais pesada das investidas genocidas foi contra os judeus da Europa; cerca de
seis milhões de judeus foram brutalmente assassinados nos campos de extermínio.
O
concurso arquitetônico do memorial para os seis milhões de judeus assassinados recebeu
mais de quinhentas propostas. O júri acabou por escolher o projeto do arquiteto
Peter Eisenman.
O
monumento está implantado em um extenso terreno, com 19 mil metros quadrados,
no centro histórico da cidade de Berlim, Alemanha. É delimitada pela
Ebertstrabe [strabe = rua] , Behrenstrabe, Cora Berliner Strasse [Strasse
= avenida] e Hannah Arendt Strabe, entre a Potsdamer Platz e o Reichstag, o
edifício do Parlamento alemão.
Poucos metros ao norte, fica o Portão de Brandemburgo. A leste, casas que datam do último período arquitetônico da Alemanha Oriental, enquanto a faixa sul ao longo da Vobstrasse é absorvida pelas representações de alguns dos estados federais da Alemanha na capital. Os edifícios foram construídos na década de 90, contíguos à Chancelaria do Reich. A oeste do monumento, do outro lado da Ebertstrasse, fica perto do Parque Tiergarten e, ao sul, os grandes edifícios da Potsdamer Platz.
O memorial e seu entorno. Disponível em: https://eisenmanarchitects.com/Berlin-Memorial-to-the-Murdered-Jews-of-Europe-2005
No
final do século XVIII, o terreno onde se ergue o monumento aos Judeus
assassinados fazia parte dos jardins ministeriais. Era rodeado por mansões
aristocráticas barrocas na Wilhelmstrasse, que depois de 1850 foram convertidas
em edifícios ministeriais.
Vale ressaltar que Richard Serra participa das primeiras fases projetuais. Serra é famoso por suas peças artísticas de Site Specific art (obras que estão em lugares escolhidos pelos artistas, fugindo dos contextos de galerias e museus). No entanto, Serra abandona o projeto quando surge a necessidade das primeiras alterações projetuais.
The Shift, Richard Serra Disponível em: https://slowpainting.wordpress.com/2008/02/02/richard-serrarobert-smithson-continuum/
Segundo
descrições de Eisenman, “o projeto manifesta a instabilidade inerente ao que
parece ser um sistema, uma grade racional, e seu potencial de dissolução no
tempo” ¹. Sugerindo que quando um projeto racional e ordenado se torna grande
demais ele acaba perdendo contato com a razão humana. Consequentemente, revelando
distúrbios e o potencial do caos em todos sistemas de ordem aparente.
A
síntese dessa primeira afirmação se desdobra de conceito em partido com a
criação de 2.711 blocos de concreto dispostos em grade racional e ortogonal.
Estes blocos, ou estelas, como o arquiteto as chama (provindo do grego stela,
que significa pedra erguida. Predas erguidas, com ou sem inscrições em
relevo na superfície, para fins diversos: políticos, fúnebres, territoriais
etc.)
As
estelas tem medidas de 0,95 metros de largura por 2,3 metros de comprimento,
variando em alturas que vão de 0 à 4 metros. O espaçamento para circulação
entre as estelas é de 0,95 metro, permitindo a passagem de somente uma pessoa.
Ocorre um deslizamento na grade, desenvolvendo espaços indeterminados. Esses
espaços se condensam, estreitam e se aprofundam para fornecer uma experiência
de várias camadas a partir de qualquer ponto.
Existe ainda a ideia de duas grades ondulantes por onde se locam e se estendem as estelas. A integração desses dois sistemas descreve uma zona de instabilidade entre eles, segundo o autor do projeto. Essas irregularidades são superpostas tanto na topografia quanto no plano superior das estelas, criando uma divergência perceptiva entre topografia e o topo das estelas.
“Nesse monumento não há meta, nem fim, nem trabalho para entrar ou sair” ², segundo Eisenman. Ele acrescenta que o monumento não concede compreensões adicionais, “pois é impossível compreender o Holocausto” . Contanto, não deixando espaço para nostalgia nem memória do passado, somente uma nova memória viva.
O
arquiteto tinha o desejo de que o monumento não contivesse memórias explícitas
do Holocausto. Que não existissem salas de exposição ou estruturas do gênero.
Este ideal foi vencido pelas críticas inúmeras ao projeto; que diziam, resumidamente,
haver pesada abstração e demasiado conteúdo filosófico, inacessível à uma boa
parcela da população.
Entretanto, após relutâncias de Eiseman, foi incorporado ao projeto um espaço expositivo, de oitocentos metros quadrados, dividido em quatro salas temáticas: das Dimensões, das Famílias, dos Nomes e dos Locais. As salas tratam da permanência de memórias cristalizadas, trazendo informações sobre: a dimensão das atrocidades nazistas, as famílias perseguidas, nomes de judeus assassinados e dos locais de extermínio.
Corte mostrando as salas . Disponível em: https://eisenmanarchitects.com/Berlin-Memorial-to-the-Murdered-Jews-of-Europe-2005
Eisenman
inclusive comenta em uma entrevista sobre sua insatisfação em adicionar o anexo
subterrâneo expositivo, que contrariava a ideia inicial de se elevar o nível de
abstração e esvaziamento de símbolos.
Como
já foi citado, temos um projeto que já nasce com inúmeras críticas: em relação
as estelas, que lembram túmulos de cemitérios ocidentais, uma crítica de senso
comum que já na gênese do projeto levantava as hipóteses de possível assimilação
simplificada.
Choca
a afirmação de Eisenman de que não é possível compreender o que foi o horror
desferido pelo regime nazista. Causa certo estarrecimento o que me parece ser tentativa
de salvar as pessoas das memórias extremamente dolorosas do Holocausto.
É
possível entender a escalada do regime nazista? É possível compreender as
atrocidades provocadas por Hitler? É possível poupar as pessoas do capítulo
mais horrendo da história moderna, ou ao menos amenizar uma memória tão sombria
e dolorosa?
A
escalada de Hitler se dá por inúmeros fatores históricos precedentes. Tais como
as dívidas herdadas da Primeira Guerra Mundial, o sentimento de vergonha e
injustiça que tomava a população por conta da derrota na guerra, entre outros.
E o
mais amedrontador do cenário político, que talvez conteste o argumento de
Eiseman: nos primeiros anos as prisões dos perseguidos pelo regime nazista eram
resultado de denúncias da sociedade civil, representado cerca de 40% das
prisões. Resultado claro do sucesso dos gigantescos intentos publicitários do
regime, que propagaram um deturpado entendimento da evolução das espécies, o “darwinismo
social” e outras atrocidades.
Posteriormente
torna-se possível entender os fatores humanos que permitiram tal atrocidade.
Freud, um dos intelectuais exilados por causa das perseguições, em um de seus
primeiros livros (Totem e Tabu, 1913) ³, explica de certo modo a natureza da
tirania.
Os
totens são símbolos sagrados e respeitados, os tabus são as proibições de
origem incerta. Os tabus são a gênese das leis jurídicas, por exemplo.
A análise
de Freud nesse livro parte da explanação sobre o complexo Édipo. A grosso modo, a tirania parte da simbolização
de um pai tirano em totem. Onde os filhos matam o pai tirano, rompendo com o
tabu e, num jantar totêmico comem o próprio pai. Isso feito, começam a descobrir
seus próprios traços tirânicos.
A
natureza humana está sempre envolta nessa dialética de necessitar ter e se
livrar de um tirano. Quando Hitler assume o poder, mesmo apresentando inúmeros
traços tirânicos, a sociedade devastada clama pela simbolização de um novo pai
totêmico que ditará os novos tabus. Porquanto, cria-se um campo permissivo para
as atrocidades de um tirano nosso, que agirá em nosso benefício.
Outra
boa análise parte dos escritos de Hanna Arendt, com o conceito da “banalidade
do mal” (Eichmann em Jerusalém, 1930) 4. Este, esboçado quando a
autora acompanhava o julgamento de um dos algozes do nazismo, responsável pelos
trens dos campos de extermínio.
A
autora nota como o mal tem um raiz banal, um ser completamente ordinário. Um
mero soldado contente, sem conhecimentos básicos de educação escolar: Contrariando o senso comum que tende a
acreditar que pessoas más são “monstros”, pessoas desprovidas de humanidade,
tal uma “subclasse humana”.
Em
realidade, Arendt nota que o mal é característica inerente ao ser humano, um
artífice que pode e será usado de maneira teleológica. E ainda nota que o algoz em questão era
somente uma pessoa que queria ascender na vida, era um cidadão com uma
mentalidade mediana. Era completamente desprovido de boas leituras de realidade
e que apenas cumpria ordens de seus superiores sem questionar.
Seguindo,
faz uma análise de que a falta de uma boa educação é fator preponderante para
que se cometa atos maldosos, atos que rompem com os tabus. Pelo simples fato de
não se ter capacidade intelectual para lutar contra um engenhoso mal.
O
“Memorial do Holocausto” cumpre a tarefa de relembrar um período atroz?
Amenizar um pouco do amargor que o passado traz é a melhor solução?
O
memorial pode ser tão genérico, uma obra completamente aberta, que aceita as
mais variadas interpretações. Pode significar tudo e qualquer coisa. Nasce de
experimentações de algoritmos, uma proeza para a virada de século. Um processo
investigativo esplêndido, que encontra correspondência nas artes visuais e
arquitetura contemporâneas.
A
declaração de Eiseman de que não é possível compreender o horror do Holocausto
parte de uma ótica metafísica. A obra toda segue na lógica de investigações
filosóficas. O resultado final é uma obra aberta, seguindo as análises de
Umberto Eco (Obra Aberta, 1972) 5.
Nesse
livro o autor faz diversas análises sobre as possibilidades das inúmeras
poéticas visuais da contemporaneidade. Eiseman, e Serra que participa da
concepção, entram nesse no campo aberto e entregam um novo conceito de arquivo,
discutido pelos filósofos desconstrutivistas, tal como Derrida.
É
interessantíssimo apresentar um modelo novo arquivístico e de monumento. A
ideia de se criar novas memórias partindo da contemplação individual da obra é
cumprida no Memorial do Holocausto. Eiseman se debruça em suas investigações e
entrega novamente uma obra prima.
Uma
questão que não podemos nos furtar: o memorial representa um pedido de
desculpas autoindulgente. É no mínimo audacioso a sociedade alemã construir um
monumento, em solo alemão, que homenageie as vítimas de uma política alemã de
outrora.
Algumas
perguntas ainda pairam: quem são os assassinos? Para onde eles fugiram? Existe
uma reparação possível?
Os
partícipes das políticas nazistas, em sua maioria, fugiram quando o regime se dissolveu.
A barbárie foi cometida também pela sociedade civil, principalmente por conta
das denúncias. Havia medo também, entretanto, os furos morais foram praticados.
Porém, a grande questão que levantamos aqui é se existe algo que represente um
pedido de desculpas.
Um monumento é eficaz o bastante? Nunca será possível responder tal questionamento. Todavia, o monumento pode servir como um lembrete do que houve, um marco que represente o máximo declínio civilizatório.
Referências
¹ Berlin Memorial to the murdered Jews of Europe. Disponível em: https://eisenmanarchitects.com . Acesso em: 20, setembro
de 2020.
² Berlin Memorial to the murdered Jews of Europe. Disponível em: https://eisenmanarchitects.com . Acesso em: 20, setembro
de 2020.
³ FREUD, Sigmund. Totem e tabu. São Paulo: Companhia
das Letras, 2015
4 ARENDT, Hannah. Eichmann em
Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras,
2009.
5 ECO, Umberto. Obra Aberta.
Rio de Janeiro: Perspectiva, 2010.
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