QUARTIER SCHUTZENSTRASSE DE ALDO ROSSI NO ESPÍRITO DE TEMPO DA NOVA MODERNIDADE

AUTORAS: 

Amanda Hanielle Landim (ArqUrb/UEG) - e-mail: amandahanielle@gmail.com

Bianca Rodrigues Maia (ArqUrb/UEG) - e-mail: biancarmaia@hotmail.com

RESUMO

        Berlim é sem dúvida uma das cidades mais intrigantes em matéria de arquitetura do ocidente, há muito o que se dizer, a cidade é um verdadeiro mosaico, com ruas, avenidas e edifícios completamente desconexos de um seguimento único. Em termos de estética, Berlim é pastiche. É a cidade que assistiu duas Guerras Mundiais a Guerra Fria e a divisão do país. Berlim também foi palco da reunificação da Alemanha, a partir da emblemática Queda do Muro em 9 de novembro de 1989, esse dia sem ceticismo algum foi certamente o último dia de 1945 pondo fim a rivalidade entre blocos. Portanto, falar sobre Berlim é falar sobre o que a cidade mostra pra o mundo, sobretudo, no contexto da reunificação, talvez, quem melhor soube aproveitar esse espírito de tempo da reunificação foi o arquiteto Aldo Rossi com a reconstrução do complexo de edifícios Quartier Schützenstrasse em 1992. Dando a verdadeira tônica e o espírito berlinenses no auge do seu desenvolvimento cultural e político do século XIX. Rebuscando o conforto e o requinte. A revitalização não acontece apenas para conectar as diferentes tipologias da cidade, talvez conectado pelos pátios, é a uma revitalização do espírito nobre dos berlinenses, é o reencontro de duas cidades indivisíveis. É a Arquitetura e a História narrando o passado em perspectiva ao futuro. Dito isso, Quartier Schützenstrasse é uma uma ode à Berlim.

PALAVRAS-CHAVE 

Berlim, Arquitetura, Tipologia, Aldo Rossi.

INTRODUÇÃO

A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz.  O passado só se deixa   fixar, como   imagem   que   relampeja   irreversivelmente, no momento em que é reconhecido.

- Walter Benjamin.

 

Todas cidades felizes se parecem, mas toda cidade infeliz é infeliz a sua maneira. O trecho original que inaugura esse ensaio está presente no Anna Karenina de Liev Tolstói¹. Contudo, a paráfrase também se manifesta como a verdadeira tônica desse ensaio, seja pelo olhar para arquitetura de Berlim no trabalho de Aldo Rossi, quanto para relação da história da cidade e como um espírito de tempo vem a tona junto com os revivalismos estéticos. Ao que tudo indica a restauração do Quartier Schützenstrasse por Aldo Rossi, é a tentantiva de reavivar o espírito de felicidade da antiga Berlim de Karl Friedrich Schinkel. Pois, é naquela Berlim, dos palacetes, do Museu Altes e do Portão de Bundenbrugo que a tradição arquitetônica berlinense se consolida, é também o espaço da visibilidade histórica alemã, e o espelho da modernidade, por isso, Rossi, olha em perspectiva a partir do seu presente para um passado de notório, visionário e deslumbrante.

O projeto do Quartier Schützenstrasse, localizado na Alemanha, elaborado por Aldo Rossi em 1992 foi feito em colaboração com Giuseppe Digiesi, Mariangela Sforza, Azzurra Acciani e Davide Bertugno, e consiste em uma quadra no bairro histórico de Friedrichstadt. O edifício foi implantado em um terreno baldio, que sofreu com intensos bombardeios. Durante a Segunda Guerra Mundial. No final do conflito, a Batalha de Berlim devastou a cidade e as tropas soviéticas ocuparam as ruínas. Berlim passou rapidamente de um grande centro urbano desenhado por Schinkel e Albert Speer, para escombros. O quarteirão é delimitado pelas ruas Schützenstraße, Markgrafenstraße, Zimmerstraße und Charlottenstraße, a poucos metros do centro histórico, e de onde o Muro de Berlim foi erguido durante a Guerra Fria. Rossi encontrou então um grande desafio de construir ou reconstruir, uma arquitetura que se relacionasse com a paisagem urbana histórica de Berlim. E não só isso, como trazer o furor de um passado germânico que determinou historicamente o auge da modernidade, como também deixou evidente a revitalização de Berlim, o verdadeiro encontro de duas cidades depois da unificação, a partir da Deutsche Wiedervereinigung em 1990. Por isso, Aldo Rossi, vai além de uma mera leitura da antiga arquitetura de Berlim, ele ultrapassa as fronteiras antes colocadas pela vergonha catastrófica e passadista. O Quartier Schützenstrasse está dialogando com a tradição arquitetônica europeia, sendo assim, Rossi, faz um verdadeiro pastiche, no bom sentido, inspira-se de maneira declarada no Palazzo Farnese, construído entre 1515 e 1516, um edifício tíquico do cinquecento renascentista, localizado em Roma, de Antonio da Sangallo e que sofreu algumas interverções posteriormente por Michelangelo. 

Após o término do conflito, Berlim apresentava extensos territórios urbanos totalmente desprovidos de edificações, ocasionando uma situação emergencial que demandava novas habitações. Esse processo de reconstrução da cidade ocorreu de forma traumática para a população, pois essas mudanças ocorreram em um curto período de tempo, dificultando que os cidadãos assimilassem a nova forma urbana. Desta feita, o pós-guerra foi o segundo momento de transformações da paisagem urbana em Berlim. Sobretudo, com a ocupação soviética, Moscou de imediato trouxe as técnicas e a estética arquitetônica de Estado. O comentário de Kenneth Frampton ilustra muito bem os desafios da implementação de uma arquitetura de Estado no cenário político soviético. O berlinense oriental não fugiu dessa realidade.

Diversos fatores concorreram para que a Nova Tradição aparecesse na União Soviética. Primeiro, houve o desafio doutrinário e incontestável lançado por Vopra aos intelectuais construtivistas, no sentido de que só o proletariado podia criar uma cultura proletária; depois, havia também os acadêmicos reabilitados do pré-guerra que apesar de tecnicamente indispensáveis para o programa de construção, não se mostrariam solidários com o Construtivismo; por último, havia o próprio Partido, que percebia que as pessoas eram incapazes de reagir à estética abstrata da arquitetura moderna. (FRAMPTON, 2003, p. 259-260)

A paisagem urbana da cidade encontrava-se composta por fragmentos de diferentes tipologias e diversificadas morfologias, Berlim era um mosaico dentro de um pastiche, o espírito do ecletismo pairava sobre a cidade. Sendo assim, a composição arquitetônica tradicional feitas durantes as reformas do século XIX e edificadas sob a égide de Karl Friedrich Schinkel dialogava na fronteira entre o neoclássico e o neobarroco, se dissolveu, num primeiro momento pelas aventuras megalomaníacas de Hitler de Albert Speer, e pouco tempo com a aniquilação da cidade no final da Segunda Guerra, posterimente a isso, a partir das intervenções aliadas e soviéticas. É interessante, como Berlim desde sua gênese é uma capacidade extraordinária de transformação arquitetônica. E foi assim que a composição pós-guerra era resultado das sucessivas interferências na cidade histórica, o que resultou em uma série de parcelas urbanas de conformação modernistas ilhadas em um tecido urbano histórico severamente arruinado por bombardeios de guerra². Ao mesmo tempo em que preciosos representantes da história do lugar eram demolidos, outros, igualmente importantes por testemunharem um novo momento cultural e social eram construídos.

Figura 1 - Vista aérea Quartier Schutzenstrasse, Aldo Rossi. Berlim, Alemanha.

Fonte:MAPCHITECTURE (2009)

Surgem então várias propostas de remodelação urbana nas duas décadas seguintes, de 1970 a 1989, oportunidades em que, durante a realização do evento International Building Exhibition Berlin (IBA-Berlim 87), com o intuito de promover à recuperação as áreas centrais, os arquitetos trouxeram para a prática vários aspectos teóricos em discussão e, consequentemente, o resultado visual das edificações foi se diversificando. Nesse evento, alguns dos pontos teóricos levantados eram, por exemplo, a busca por edificações com um elo cultural que buscava o resgate das tradições urbanas de construções em quarteirões fechados tradicionalmente conhecido em Berlim como Mietskasernenstadt³, numa concepção contemporânea. Além de se contrapor as determinações modernistas e a busca pelo resgate dos espaços públicos da cidade voltados para o pedestre, valorizando os espaços de encontro e a rua como espaço de socialização.

Para cumprir esse desfio mencionado anteriormente, na expectativa de eliminar a memória de edifícios baratos, mal feitos e insalubres, Rossi se apoiou nas características da antiga Berlim, mantendo a estrutura existente do terreno, a altura da edificação, a divisão do mesmo em pequenos lotes. Sua forma lembra a antiga divisão urbana de Berlim, constituindo um bloco recheado de diferentes tipos e linguagens arquitetônicas. O arquiteto se orientou em alguns princípios estabelecidos pelo governo berlinense, de reconstrução crítica, que visava restabelecer o centro vital da cidade no antigo centro barroco. Para isso, além de determinar afastamento frontal nulo e altura máxima de 20 metros para os edifícios, estabeleceu também usos múltiplos por quadra e determinou que o residencial devesse ocupar 20% do total da área edificada. Aldo Rossi resgata o verdadeiro espírito nobre da Berlim do século XIX. A historiadora e arquiteta portuguesa Ana Rita Forjaz Rocha descreve o projeto arquitetônico de Berlim no século XIX e é perceptível que Rossi tentou trazer à tona esse lastro de civilização.

A maior parte do planeamento urbano do século XIX focou-se na expansão das cidades e em proporcionar orientações para a construção de blocos residenciais. Em 1874, a Verband Deutscher Architekten und Ingenieurvereine (Sociedade de arquitectos e engenheiros alemães) definiu dois princípios básicos na expansão de uma cidade “considerando simultaneamente os aspectos técnicos, económicos e administrativos [...] A atribuição do desenvolvimento dos quarteirões a privados passou a ser uma prática bastante comum em meados do século XIX. (ROCHA, A. R. F. 2016, p. 32).

E na expectativa de restaurar esse edifício, Rossi praticamente nos conecta ao espírito de tempo de sua época, era o momento da reunificação alemão, e assim, ele também nos conecta a concepção modernista do século XIX. Essa conexão com o zeitgeist, fica cristalizada pelo concreto armado e o aço da reedificação. Sendo assim, talvez, e acima de tudo, a proposta desse ensaio não é fazer apensas uma análise livresca do que foi produzido sobre o Quartier, é uma apreciação sobre o espírito de tempo e as colocações historicamente marcadas e cristalizadas numa leitura profícua de intelectualidade na arquitetetura de Berlim.

A relação de Aldo Rossi com Berlim antecede sua participação na IBA, já que destacava como uma das principais características da cidade, no final do século XIX, a variedade tipológica de suas construções e sua forma de distribuição em zonas homogêneas, o que dava a cidade um caráter próprio. Rossi resgata esse caráter próprio da arquitetura berliniense. Sua afirmação de que a cidade é a materialização do contexto histórico e que nela é possível identificar o processo de formação de uma cultura aponta para a compreensão da cidade como uma síntese de valores coletivos. Dito isso, de acordo com Rossi a cidade é a memória coletiva dos povos, e como a memória está ligada a fatos e a lugares, a cidade é o “locus” da memória coletiva. Não é um mero espaço plástico, é o exercício da civilidade.

[...] a arquitetura desaparecida e vitimada pela Segunda Guerra Mundial deveria ser reconstruída com´era e dov´era, em termos formais este é igual ao original, mas os materiais e técnicas construtivas utilizadas são contemporâneas a sua reconstrução. (FARIA, J. P. R.; DUARTE, L. B. M.; RODRIGUES, J. B.; 2018, p. 1) 

Combinando esse pensamento ao do texto “Os Princípios para a restauração dos monumentos”, de Cesare Brandi (2018), onde se chama atenção que para solucionar o projeto deve levar em consideração tanto o edifício em si, quanto da possibilidade do entorno e do que já existe ali se tornar o protagonista, e analisando o resultado formal do Quartier, cabe a seguinte questão: O que Rossi queria passar para a cidade com aquele edifício? Algo revolucionário, que se destacasse e se ressaltasse em relação ao entorno?

          Nesse cenário, Rossi descreve seu projeto como uma “Homenagem à arquitetura típica de Berlim”, o edifício seria então uma restauração histórica? Ou seria um restauro somente dos monumentos que faziam parte do quarteirão, ou o que restou deles, mas seria uma proposta de restaurar a memória de toda a área, principalmente central, e seu significado histórico. Ao que tudo indica, Rossi ultrapassou a fronteira da restauração, ele partiu para reconstrução, em razões metodológicas, vida de regra, a restauração determina quase uma metalinguagem para mostrar que existe um edifício do passado e a sua nova versão,  é preciso chamar atenção para isso, a restauração, sempre expõe suas vísceras do passado. Logo, a restauração que além de estar ligada ao próprio monumento do ponto de vista espacial, liga este pequeno trecho arquitetônico a uma história imaterial enorme. De fato, seria por esse motivo que o edifício em questão seja considerado uma contribuição notável para a revitalização da antiga faixa da fronteira do Muro de Berlim.

Figura 2 - Fachada Quartier Schutzenstrasse, Aldo Rossi.

Fonte: MAPCHITECTURE (2009)


Em 1994, o Quartier Schützenstrasse começa a ser construído, olhando somente para o exterior é difícil de acreditar que o conjunto foi construído ao mesmo tempo, as diversas cores e tipologias aparentam existir vários edifícios diferentes, geminados em um mesmo terreno, com diversas fachadas, algumas até muito estreitas. O Quatier evidencia uma colagem de ícones e arquétipos arquitetônicos com vários outros edifícios de referência.

 Nessas vicissitudes, Aldo Rossi, considerando o projeto como uma colagem arquitetônica, propõe-se também uma parte da fachada, que corresponde a uma tipologia interna específica, que faça referência a um palácio romano. Essa ideia de projetar usando diferentes citações de maneira diferente pode ser encontrada em dois grandes mestres da arquitetura berlinense, como Schlüter no Palácio de Berlim e Schinkel na Bauakademie em Berlim. 


Figura 3 - Seções do Quartier Schutzenstrasse, Aldo Rossi.

Fonte: DIVISARE (2017)

 

 O edifício, de altura monumental5, o remetendo mais uma vez às construções antigas e ao dimensionamento do IBA6, foi construído para abrigar residências, espaços comerciais e escritórios, fazendo analogia à cidade de Berlim pré-guerra, o conjunto foi dividido em 12 seções, muito diferentes entre si em cores, tamanhos, formas, tipologias e estilos, representados nas fachadas externas. Nessa fachada diversificada, o único elemento que une todo o edifício é a cor acinzentada dos pavimentos inferiores, mesmo que as tipologias e estilos se oponham, a cor acaba os relacionando, cor esta que contrasta com as dos demais pavimentos, como verde e vermelho, típicos dos edifícios de Rossi.

Nos quatro lados do conjunto é possível observar muitas fachadas diferentes, porém, na realidade existem seis desenhos distintos que, alternadamente e com poucas modificações se repetem ao longo de todo o perímetro, resultando em um equilíbrio composicional, isso nos traz a sensação de que cada parte foi construída de formas e em tempos diferentes. Ultrapassando as fachadas, as seções estão funcionalmente ligadas entre si, tendo seus pisos nivelados para que interiormente, os espaços possam fluir de forma contínua e ordenada, sem repetir o que se perdeu, recriando a vida interna do bloco, mesmo que externamente não aparente essa postura, além disso, o arquiteto opta por construir ambientes passíveis de transformação, podendo ser divididos ou combinados de acordo com a necessidade do usuário. Os caminhos, arcos e o jardim no corredor principal ligam os diferentes edifícios e dão vida ao interior.

Figura 4 - Fachada Quartier Schutzenstrasse, Aldo Rossi.

Fonte: DIVISARE (2017)

Os materiais utilizados no projeto revelam suas características modernas, sendo eles principalmente ferro e vidro, até mesmo o concreto armado7, revelando as conquistas da engenharia estrutural, tanto na estrutura quanto na fachada, com placas de alumínio pintadas, combinadas as placas opacas das coberturas, também são usados materiais comuns aos edifícios locais como tijolos e pedras. O vidro por sua vez é emprego em massa nas repetidas aberturas no edifício. Os beirais limitam sua altura, dando a ele uma continuidade linear.

Um aspecto interessante são as formas alcançadas dentro do edifício, como a torre ortogonal, Rossi, se inspira nos teatros flutuantes venezianos do século XVIII, porém o arquiteto transforma a forma octogonal no vazio do edifício, podendo ser  contemplado pelo pedestre e permitindo a iluminação natural dentro do espaço.



As referências tipológicas encontradas tanto nas fachadas e suas aberturas quanto nos pátios internos, passam pelo racionalismo renascentista italiano, e por obras do próprio Rossi. A coexistências anacrônica desses estilos, históricos e modernos, estão explicitados nos detalhes, nas molduras, nos trabalhos em pedras, combinados com o uso de ferro e vidro, revelando o caráter pós-moderno de Rossi. Esses pátios funcionam tanto como ambientes internos, que servem de apoio para a funcionalidade edifício, quanto como local de passagem para quem vem da rua, possibilitando que os pedestres atravessem diretamente de um lado para o outro do bloco. Combinado com essas aberturas dos pátios, destinadas à passagem pública como se estivesse abrindo o edifício para a cidade, convidando as pessoas a interagirem, poderia ser proposital?

Uma ideia tornou-se um edifício. Podemos perceber nitidamente a delicadeza que o arquiteto trabalha todos os aspectos formais, seu senso de simetria, à ideia de fragmento, a cor como parte integrante e essencial da arquitetura, do desenho envelope externo em contato com o interior, a ligação e importância do lugar que nunca deve ser subestimada. Dizemos que ele ainda vai além, ele consegue eliminar todo o aspecto de rudez e de insalubridade dos antigos Mietskasernenstadt. Contudo, seria possível perceber toda essa sensibilidade na criação do edifício e nas suas singularidades abordadas por Rossi, mesmo sem conhecimento prévio sobre o lugar em que o mesmo está inserido e seu contexto de criação? Será possível que pessoas sem tal conhecimento o admire e visualize todo esse esforço e sensibilidade do mesmo? E entenda a postura arquitetônica adotada por Rossi?



Figura 6 - Conjunto de detalhes da fachada Quartier Schutzenstrasse, Aldo Rossi.

Fonte: ARCSPACE (2012)

Acreditamos que não, a arquitetura não é uma mera fruição estética, dita arte pela arte, a arquitetura ultrapassa qualquer fronteira da futilidade, arquitetura é poder, é história, o próprio Rossi definiu o espaço plástico da arquitetura como o elemento da consagração da memória. Talvez seja por isso que é necessário invocar o filósofo e historiador Walter Benjamin e toda sua sagacidade sobre o tempo e a memória. Benjamin define a memória como um relampejo, instantâneo e ferroz, vem como um corte de cutelo que secciona a carne.

Sendo assim, talvez seja isso que a arquitetura faça, ela secciona o ambiente, rompe a terra com traços finos e delicados. Portanto, é a partir desse cenário de inquietudes que se faz necessário revisitar esse passado a partir da relação entre arquitetura e a memória, porquê é revisitando esse passado que se compreende a ideia da permanência desses relampejos, é a maneira que nos conectamos à tradição. Por isso, o Quartier não pode ser tratado como um simples edifício, ele é a história cristalizada, com muito esmero diga-se de passagem. Quartier é o verdadeiro arauto do nobre passado eclético e moderno de Berlim. Moderno, leia-se passagem do século XIX para o XX, é o espelho de um espírito de tempo. Uma nova modernidade. “A arquitetura é a vontade da época concebida em termos espaciais. Viva, mutável, nova”. (FRAMPTON, 2003, p.195). Como última observação, como pratrimônio, ele deve ser tratado como tal, seja por motivações históricas e urbanas da cidade, ou mesmo políticas, sendo ele uma restauração, seja pela interpretação de inovação e conexão com o passado. Essa é a verdadeira felicidade de Berlim, ou mesmo o sonho de Aldo Rossi.

NOTAS DE FIM:

1 “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.” Liev Tolstoi  Anna Karenina.

É indispensável chamar atenção para o fato de que muitas construções anteriores a guerra que sobreviveram aos bombardeiros só foram restauradas depois da reunificação alemã, isto é, a partir da década de 1990. Sobretudo, na Berlim Oriental.

3 O Mietskasernenstadt que pode ser traduzido literalmente como “Cortiço, ou Quarties de alugal”, é um tipo de edificação urbana construída para atender as populações de trabalhadores da Indústrial no século XIX. Com a chegada da década de 1930, Berlim foi considerado pelo teórico da arquitetura Werner Hegemann o maior cortiço do mundo, tamanha era a sua população fabril que viviam nas dependências dessas habitações. Segundo Frampton os Cortiços eram: “A acomodação de tão volátil crescimento levou à transformação dos velhos bairros em áreas miseráveis e, também, à construção de moradias baratas e de cortiços, cuja finalidade principal, dada a carência geral de transporte municipal, era proporcionar, da forma menos onerosa possível, a máxima quantidade de alojamento rudimentar dentro da distância a pé dos centros de produção. (FRAMPTON, 2003, p. 14)

4 Espírito do tempo (Zeitgeist), é um conceito alemão que designa as respostas para o chamado espírito da época, ou seja, a arte e a filosofia são retratos da própria cultura no tempo, no meio o qual ela se empenha em analisar, é a reverberação do tempo em sua mais genuína expressão, como se o artista ou o intelectual carregassem essa cultura no qual estavam mergulhados, mesmo que inconscientemente.

Aqui é possível abrir o espaço para o debate sobre a monumentalidade, o Quartier Schützentrasse não é só monumental pela imponência de sua altura, se analisar a acepção da palavra monumentalidade, é possível dizer que sua origem latina vem de memento, ou seja, esse edifício além de colossal na relação de escalas, é um edifício memorável, que é lembrando pelo reavivamento do passado encantador de Berlim.

6 International Building Exhibition Berlinm, foi um evento que corroborou na criação de um projeto de de renovação urbana em Berlim Ocidental, Alemanha. Iniciado em 1979, foi concluído em 1987, igualando o 750º aniversário da fundação de Berlim. O IBA seguiu duas estratégias distintas: "renovação urbana cuidadosa" e "reconstrução crítica”. Renovação que preservava as diferentes eras históricas de Berlim e Crítica, pela maneira como os edifícios eram reelaborados de acordo com as percepções política a época.

7 Em relação  aos novos materiais e técnicas, podemos destacar um excerto da obra de Kenneth Frampton. “Como os tirantes de ferro forjado, ainda usados para estabilizar a estrutura, eram enterados no piso de concreto, essa proposta aproximou fortuitamente Fairbairn dos princípios do concreto armado. Numa tendência semelhante, um notável edifício de quatro andres, com estrutura de ferro fundido e forjado, foi construído no estaleiro naval de Sheerness.” (FRAMTPON, 2003, p. 29).

REFERÊNCIAS:

ARSUFF, Pierluigi. Aldo Rossi, Quartier Schutzenstrasse, Berlim – Mitte, 1995 – 1998. Revista Capitali Europee.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade. In: _____. Magia e Técnica, arte e política - ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, volume I, 2ª edição, São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

BENJAMIN, W. Paris, Capital do século XIX. In: KOTHE, F. (org). Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1991.

BRONSTEIN, Laís. Fragmentos de uma crítica. Revisando a IBA de Berlim. 2002. Tese (Doutorado) - Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona, Universidad Politécnica de Cataluña, Barcelona, 2002.

BOAVENTURA, C. R. Aldo Rossi: razão e poesia. 2019. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Área de concentração: História e Fundamentos da Arquitetura e do urbanismo. São Paulo, 2019.

FARIA, Juliana Prestes Ribeiro de; DUARTE, Laura Bicalho de Melo; RODRIGUES, Juliana Beatriz. Incêndio e reconstrução. “Com’era, dov’era”, uma história que se repete. Arquitextos, São Paulo, ano 19, n. 223.03, Vitruvius, dez. 2018 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/19.223/7244>.

FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: o breve século XX. 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

LÖWY, Michael. Walter Benjamin: Aviso de Incêndio. Uma leitura das teses sobre o conceito de história. São Paulo: Boitempo, 2005.

ROCHA, Ana Rita Forjaz. Schinkel e o desenho da cidade de Berlim. Porto: Mestrado Integrado em Arquitetura, 2016.

ROSSI. Aldo. Unidade Residencial e Comercial, Schutzentrasse. 2020. Fundação Aldo Rossi

 




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