PARADIGMA ELETRÔNICO NA ARQUITETURA: a dobra e a virtualidade no Pavilhão da Água do grupo NOX
Autores:
EDUARDO ASSIS CARVALHO (ArqUrb/UEG) - e-mail: carvalhoassiseduardo@hotmail.com
A contemporaneidade é marcada
por diversos eventos e particularidades que a diferencia do período anterior,
ou melhor definindo, do momento antecedente à Segunda Guerra Mundial. A
sociedade que se desenvolveu após a rendição dos japoneses experimentou um progresso
econômico, tecnológico e cultural que superou as etapas anteriores da
industrialização. A produção em massa entra em outro patamar globalizado de fabricação
de bens de consumo e aos poucos as distâncias são encurtadas e o sujeito
contemporâneo percebe o mundo em blocos de países cada vez mais dependentes
entre si. O otimismo em relação a tecnologia e o futuro característicos do
período anterior à 1939, de cunho iluminista, se depara com a possibilidade de
o homem exterminar a si mesmo, gerando incertezas e uma apreensão pessimista em
relação aos rumos que a ciência e humanidade estavam tomando.
Mudança de paradigmas na arquitetura
Essa mudança de postura em
relação à tecnologia é uma consequência do que Peter Eisenman (2008), principal
arquiteto do movimento desconstrutivista, chamou de quebra do paradigma mecânico
e início do paradigma eletrônico. Ele exemplifica essa mudança com a relação
entre a fotografia e o fax. A fotografia está dentro do paradigma mecânico,
onde o sujeito tem controle sobre o processo de criação da foto, podendo ajustar
contraste, brilho e saturação sob o aspecto da visão. Com o fax(eletrônico) a
interação do sujeito não é mais uma exigência, pois ela se reproduz sem o
controle ou ajuste. Assim o fax é um desafio ao conceito de originalidade, que
segundo Eisenman:
Se
na fotografia a reprodução original ainda conserva um valor privilegiado, na
transmissão fac-similar o original permanece intacto, mas perde todo valor
distintivo, que não se transmite com a cópia. A desvalorização mútua do
original e da cópia não é a única transformação induzida pelo paradigma
eletrônico. A totalidade daquilo que conhecemos como a realidade do mundo foi
posta em questão pela invasão da mídia em nossa vida cotidiana, porque a
realidade sempre exige de nós uma visão interpretativa. (2008, p. 601)
Ambos os conceitos,
originalidade e mídia eletrônica, colocaram em xeque os domínios mecânicos e a
percepção da realidade. O homem do pós-guerra perde aos poucos o controle da
produção com a robotização da linha de produção, a apreensão do real, com as
câmeras que vigiam onipresente a sociedade, e consequentemente a mídia
eletrônica ressignificando e manipulando o real. Esses aspectos causam estranheza
e mudam aos poucos a rotina e dinâmica social, gerando desconforto e pessimismo
em relação à tecnologia, principalmente quando a visão interpretativa da
realidade não é mais uma condição necessária ao paradigma eletrônico.
Em
outra perspectiva no mesmo momento contemporâneo, o entusiasmo em relação aos
avanços tecnológicos é também uma realidade, principalmente no fim do século XX.
Esse ensaio busca explorar o seu lado criativo, especialmente na década de
noventa, com o texto publicado em 1991 pelo arquiteto Peter Eisenman “Visões
que se desdobram: a arquitetura na era da mídia eletrônica” e o Pavilhão da
Água do grupo NOX, projetado em 1997, que acaba por utilizar e expandir os
conceitos propostos por Eisenman. Além disso, o ensaio encorpa a discussão
utilizando como embasamento o filme Matrix (1999). O filme explora a ideia de como a tecnologia
pode moldar nossas vidas, e nos ajuda a problematizar as possibilidades da virtualidade
enquanto formadora de espaço.
A argumentação central que
Eisenman faz em seu texto está relacionada diretamente com o fato de que o
paradigma eletrônico, que atingiu diretamente a maneira como a sociedade
compreende e apreende o significado do real, não resvalou da mesma forma no
campo arquitetônico. Ela se mantinha ainda presa aos conceitos renascentistas. Uma
das respostas a essa contestação é o fato de a arquitetura ter sido sempre o
sinônimo de realidade, sendo a vitória do homem em relação a natureza. É o
domínio das massas e corpos construídos que desafiam (e vencem) a gravidade. E
essa conquista se deu por meios mecânicos, como pilares, vigas e lajes. Ainda
mais importante esse domínio se deu por meio da mecânica da visão. Ou seja, para
Eisenman a arquitetura sem o paradigma mecânico não seria o que é hoje.
O conceito de visão é definido
por Eisenman como o ato de ver e pensar. O fato de a visão ser o sentido
privilegiado pela a arquitetura desde o século XV fez com que essa maneira de
compreender o espaço fosse normalizada. A maior contribuição de Fellipe Brunelleschi,
segundo Eisenman, foi o fato de ter criado o desenho perspectivado no século XV.
A partir de então toda produção arquitetônica do mundo ocidental, do barroco ao
pós-modernismo, esteve centrada nessa maneira de perceber e enxergar o espaço.
O autor indo mais além afirma que essa maneira de enxergar o espaço é a
resposta de outro paradigma, o antropomórfico, que surge no renascimento.
A visão perspectivada e
monocular teve, para Eisenman, uma permanência ao longo dos estilos
arquitetônicos justamente por permitir colocar em duas dimensões o que se vê em
três, e a partir de então projetar o espaço de maneira racional.
O sujeito esteve sempre preso,
portanto, na visão estabelecida por quatro paredes e a hierarquia entre
interior e exterior. Isso, aliado ao fato de normalizarmos também as inscrições
presentes na arquitetura, fez com que de fato não tivéssemos ainda rompido
atualmente com o paradigma mecânico. As inscrições se referem ao objeto que é
reconhecido e tem a mesma função em vários edifícios. Janelas e portas são exemplos
de inscrições, e esses elementos arquitetônicos desempenham um papel
fundamental para manter visível e constante a hierarquia do interior e
exterior.
A superação dessa visão racionalizadora
e monocular que detecta elementos e se insere nos espaços dominante e
unilateral fora interrompida na história da arquitetura em alguns momentos,
como nos mostra Eisenman. Para o autor, o Barroco é um exemplo de interrupção,
já que inscreve signos que são apreendidos não somente pela visão, mas também
de forma tátil e háptica. A Igreja San Vitale de Piranese com os múltiplos
pontos de fuga também é um exemplo de quebra da visão monocular instaurada, já
que interrompe a possibilidade de uma visão prontamente unificadora.
O cubismo buscou trazer a
quarta dimensão no campo artístico ao eliminar a visão perspectivada. Para Eisenman
o estilo achatou as bordas, desfigurou a imagem, virou-a de cabeça para baixo e
por fim tentou eliminar a perspectiva monocular do ponto de fuga presente nos
quadros pictóricos. Porém o autor afirma que no campo arquitetônico do Estilo
Internacional e os Construtivistas buscaram extrapolar as fronteiras da
perspectiva como o Cubismo, mas acabaram falhando ao possibilitar o sujeito de
permanecer equilibrado e com a visão monocular racionalizadora do espaço.
A arquitetura “moldada” a partir de paradigmas tecnológicos muda a relação do homem com o processo projetual tradicional. Eisenman chama essa criação de “espaço dobrado” numa menção ao estudo sobre o tema elaborado por Giles Deleuze. No espaço dobrado as relações espaciais não encontram comunicação com a visão tradicional, há a produção de uma relação nova com a possibilidade de estar dentro e fora, já que não são pensados a partir de uma grelha ortodoxa e cartesiana.
Com o mesmo entusiasmo e
otimismo em relação às possibilidades espaciais que a tecnologia poderia
proporcionar, vemos o grupo de arquitetura e arte experimentais na Holanda,
grupo NOX. O grupo explora a virtualidade na arquitetura quase que nos moldes
de pensamento exposto por Eisenman.
Liderado pelo arquiteto Lars
Spuybroek, o grupo se descreve como “um dos raros escritórios que produzem
arquitetura bem como arte”. Essa afirmação abre o questionamento: seria então a
arquitetura tecnológica delegada somente à categoria de arte, sendo possível
somente sua apreciação esporádica? Seria possível esse novo espaço permear as
vidas cotidianas? Eisenman entende que só é possível descortinar a visão com a
contemplação. A arte exige essa contemplação, e talvez a arquitetura esteja
mais distante da arte do que supõe.
A apreciação artística se
materializou, no caso do grupo Nox, com a concepção do Pavilhão da Água.
Idealizado em 1994 e finalizado em 1997 para alojar uma exposição permanente
sobre a água na Terra, o pavilhão foi instalado na ilha artificial de Neeltje
Jans, Holanda. A visão externa do pavilhão já nos aproxima do universo
tecnológico proposto. A forma desforme e fluida metálica conta com tubos na sua
parte superior que se assemelham a máquinas à vapor, que aliás, parece ser o
único ponto de percepção visual que nos situa na malha formal e ortogonal. Após
isso, tudo é virtual. Na parte interior, o multiverso da arquitetura
convencional se instaura. O caráter líquido se explicita no uso de luzes e
projeções, na não diferenciação entre o que é parede, piso e cobertura.
Definido pelo próprio grupo como “o primeiro do seu tipo que combina uma
inovação interativa interior envolvendo todos os sensos com uma geometria
contínua”. Ora, a geometria contínua é o
espaço dobrado de Eisenman.
Retornando ao filme Matrix, Neo
o protagonista, é convidado por um grupo a perceber a partir de uma pílula
vermelha que o mundo em que vivia não era real, e sim um programa digital que
simula uma realidade alternativa. O seu corpo verdadeiro estava na verdade o
tempo todo preso a um sistema de cabos ligados à matrix, submerso em um líquido
gelatinoso. Ao se dar conta de tal fato se sente horrorizado e entra em pânico.
Como a reação de Neo, da mesma maneira o Pavilhão da Água traz em si diversos
componentes que num primeiro momento parecem assustar e retirar da zona de
conforto aqueles que se aventuraram em adentrar o seu interior.
A casca exterior de nada
revela o que tem dentro, as aberturas são inexistentes, sendo o acesso
permitido apenas pela entrada inicial. Em uma analogia ao filme Matrix, seria
no início do percurso onde os visitantes escolhem tomar a pílula vermelha, que
os fará entrar em outra dimensão arquitetônica, no espaço dobrado proposto por
Deleuze. Uma névoa ocupa todo esse espaço, causando suspense. O visitante é
exposto à incerteza do que existe além da abertura e a limitação da visão, que
daria uma noção perspectivada do espaço, propõe a quebra da hierarquia entre
interior e exterior, já que a continuidade entre ambos não existe.
Em seguida foram projetados simuladores de
gêiseres que espirram água, ao mesmo tempo em que o espaço é “submerso” por
imagens aquáticas que trabalham em sintonia com as luzes, com cores variadas,
criando um ambiente que “responde” ao usuário. Com a descrição minuciosa
publicada no site Vitruvius, o arquiteto Marcos Kretli (2003) nos permite a
quase experimentação corpórea deste espaço. Para Kretli, ao longo do percurso o
edifício responde cada vez mais às reações dos usuários, e o centro de
experimentação da água se torna um edifício interativo. O pavilhão foi
projetado justamente para reagir a cada interação dos visitantes. Existem elementos
arquitetônicos móveis que se deslocam, painéis eletrônicos que se transformam
ao toque humano.
O aspecto da grelha não
cartesiana implica principalmente em eliminar a visibilidade dos eixos
verticais e horizontais, e o sujeito não possui o equilíbrio que está
acostumado. A gravidade, já vencida pela arquitetura do paradigma mecânico, é
novamente protagonista. Com os avanços ao longo de milênios no campo
construtivo, temos tecnologia e materiais para manter os edifícios erguidos.
Porém o Pavilhão da Água faz com que ao mesmo tempo que se mantem estático no
terreno, no interior tudo é móvel, e a gravidade é um elemento de composição do
espaço, pois brinca o tempo todo com os sujeitos que ali estão. Ela se torna
aliada da tecnologia para criar interatividade com os usuários.
Da mesma forma no filme Matrix
a gravidade é protagonista, justamente por ter sido alterada no mundo virtual.
Os personagens usam e abusam dela, pulam de distâncias que são normalmente
impossíveis para qualquer ser humano. O mundo, apesar de aparentar ser
cartesiano, é um ambiente onde os padrões estabelecidos são quebrados e as
subversões são permitidas. É sempre visível durante o decorrer do filme essa
característica do ambiente de Matrix, a partir do momento em que os
protagonistas conseguem também “dobrar” a gravidade, o que resultou na icônica
cena em que Neo desvia de balas deferidas contra ele apenas ao deitar seu torso
para baixo, com os pés ainda no chão.
Os aspectos visíveis de uma
continuidade não linear e cartesiana acabam gerando um espaço que não é
apreendido pela visão racional perspectivada. As inscrições presentes no
pavilhão não estão dentro da lógica tradicional. Ao analisar por exemplo o
local onde se pisa, não dá para colocar como um piso, pois seu corpo se desloca
da posição horizontal e em determinado momento vai para o lado vertical, e o
que era piso se transforma em parede. Consequentemente o que era parede em um
determinado momento se torna teto. E esse por último volta a ser parede, que
retorna a piso. Portanto a inscrição tradicional não se encaixa para
compreender o pavilhão, mas sim uma dobra, ou melhor, quase uma “tira de
Moebius”.
Com um edifício em dobra é
possível fazer com que os visitantes utilizem mais de um sentido ao entrar e
vivenciar o edifício. O tato é explorado, pois a forma interna força os
usuários a se agacharem, criando outro tipo de conexão. Isso resgata o conceito
de contemplação que Peter Eisenman propõe. Para superar o paradigma mecânico na
arquitetura os edifícios não teriam que se transformar em “sujeitos”, mas
responder de certa maneira a interação que os usuários exercem sobre ele. Não é
apenas um edifício funcional, mas um espaço que faz com que o ato de ver se
desligue do pensar.
O Pavilhão da Água só foi
possível graças à tecnologia presente à época. A sua forma dificilmente seria
estabelecida dentro de uma visão perspectivada bidimensional. Essa questão
contribui ainda mais em classificar o edifício dentro do paradigma eletrônico
proposto por Eisenman. Da mesma maneira que esse paradigma transformou a
sociedade contemporânea, com as questões já colocadas aqui, ele deve adentrar
no mundo arquitetônico a partir do questionamento da visão e o desenho
perspectivado bidimensional. Para ele uma das maneiras de romper com o desenho
racional é não mais projetar no papel bidimensional espaços com significados.
Segundo Eisenman:
Quando, por exemplo,
não mais podemos desenhar uma linha que estabelece uma relação de escala com
uma outra linha no espaço, isso não tem mais qualquer relação com a razão ou
com a ligação entre o olho e o pensamento. A deflexão dessa linha no espaço
significa que não há mais uma correspondência em escala 1:1. (2008, p. 605)
Dessa maneira não é possível
mais o desenho em escala bidimensional ter relação de visão com o espaço
dobrado, e é perdida a ligação com a visão racional monocular. Isso aliada a
inscrições que não desempenham mais o papel tradicional, temos no Pavilhão da
Água uma superação do paradigma mecânico. Nesse edifício tecnologia e espaço
dobrado se misturam e criam um ambiente de exceção, fora da matrix. Os sujeitos
que ali adentraram tiveram a possiblidade de vivenciar um espaço até então
inédito, responsivo e interativo. A zona de conforto da visão é deixada de lado,
e a incerteza do que é cada elemento arquitetônico, buscou provocar a dúvida
nos padrões que sempre usualmente vivenciamos.
Como no filme Matrix, a
virtualidade está presente no interior do Pavilhão da Água, só que a tecnologia
utilizada veio para mostrar justamente a sua capacidade como geradora de espaço
e de arte. Enquanto o filme explora a visão de um mundo onde a tecnologia criou
consciência própria e dominou o ser humano, uma distopia que busca
problematizar os rumos que os avanços tecnológicos podem tomar, no Pavilhão da
Água temos o otimismo característico dos anos 90, ainda mais considerando os
avanços feitos pelas empresas de tecnologia como Microsoft e Apple.
A questão de Eisenman
problematizar a visão e utilizar o conceito de espaço dobrado faz com que de
repente a visão e concepção de espaço da maneira como estamos habituados seja
desconstruída, e a “matrix” em que sempre estivemos inseridos fosse quebrada. A
possibilidade de fugir da malha ortogonal cartesiana, do desenho perspectivado racional
criado, apresenta novas possibilidades arquitetônicas afastadas do conceito de
visão. E assim, edifícios como o Pavilhão da Água do grupo NOX são concebidos,
materializando as ideias de Eisenman e aos poucos impactando o mundo
arquitetônico com o paradigma eletrônico.
EISENMAN, Peter. Visões que se desdobram: a arquitetura na era da mídia eletrônica. In: NESBITT, Kate (org). Uma nova agenda para a arquitetura. 2ª Ed: Cosac & Naify, 2008;





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